
Parece apenas um gracioso jogo de palavras, um brincar com os sentidos que elas têm, como nesta época se usa, sem que extremamente importe o entendimento ou propositadamente o escurecendo. É o mesmo que gritar um pregador para a imagem de Santo António, clamar na igreja, Negro, ladrão, bêbedo, e, tendo assim escandalizado o auditório, explica a intenção e o artifício, mostra como toda a apóstrofe foi aparência, agora sim vai dizer porquê, Negro porque tivera a pele tisnada pelo demónio que lhe não conseguira enegrecer a alma, ladrão porque dos braços de Maria roubara seu divino filho, bêbedo porque vivera embriagado da divina graça, mas eu te direi, Cuidado, ó pregador, que quando fazes virar ao conceito os pés pela cabeça estás dando involuntária voz à tentação herética que dorme dentro de ti e se revolve no sono, e clamas outra vez, Maldito seja o Pai, maldito seja o Filho, maldito o Espírito Santo, e logo acrescentas, Bradam os demónios no inferno, e dessa maneira julgas escapar à condenação, mas aquele que tudo vê, não este cego Tobias, o outro para quem não existem as trevas e a cegueira, esse sabe que disseste duas verdades profundas, e das duas escolherá uma, a sua, porque nem tu nem eu sabemos qual é a verdade de Deus, muito menos se é verdadeiro Deus.
Memorial do Covento